Sunday, November 26, 2006

TO WHOM IT MAY CONCERN (V)

Dado o aproximar da época Natalícia e a lentidão dos serviços de correio Timorenses, serve o presente post para informar que poderão enviar os vossos presentes a partir deste momento para:
Caixa Postal 272
Dili
Timor Leste
Aceitamos de tudo porque acreditamos que de graça, até injecção na testa ( a versão actualizada é "até injecção na veia do olho", mas achamos demasiado gráfico).E essa coisa de não aceitar nada de estranhos, bem, também não é bem assim....
Portanto tudo o que tiverem a mais lá em casa, podem enviar para aqui (pérolas por exemplo).
Também gostamos muito de livros e revistas e coisas para fazer com as mãos e paz no mundo e justiça social, claro. Mas se nos mandarem livros...

Friday, November 24, 2006

LABARIK SIRA

Na TVTL (Televisão de Timor Leste)há um spot que diz:
O Sr. Santos não tem trabalho, por isso passa o dia a jogar cartas. A Sra. Santos tem 5 filhos e está grávida. Também não tem trabalho por isso passa os dias a conversar com as amigas. Os filhos trabalham. Uma lava carros na rua, o outro vende cartões telefónicos, o outro vende fruta, o quarto pede esmola (o quinto já não me lembro o que faz). E um rapaz pergunta a um deles: “então que fazes?” Estou a vender cartões o meu pai não trabalha” Não sabes que devias estar na escola que isso se chama trabalho infantil?
Não defendo que as crianças devam passar uma infância sem responsabilidades. Ajudar os pais em pequenas tarefas fá-las desenvolver competências a vários níveis. Tenho pena quando vejo um menino a trabalhar num campo de arroz, mas compreendo que num ambiente rural o trabalho no campo em conjunto com a família, é praticamente um acto cultural e aos pequenos cabem as tarefas mais leves. E durante esse trabalho aprendem a interagir com a comunidade, aprendem as histórias dos mais velhos, aprendem os ciclos da natureza e regra geral, não faltam à escola.
Na cidade os pais não trabalham. Porque não há trabalho. Porque também não o procuram. Porque não pegam no pau e o atravessam sobre as costas e calcorreiam as ruas de Dili sob um sol abrasador carregando o maracujá, a manga, a banana, o tomate, o peixe…. Não, mandam os meninos. E em casa ficam, como o Sr. Santos, a jogar ás cartas, a apostar o dinheiro ganho pelos meninos, a bater na mulher, e a fazer-lhe filhos. Muitos filhos.

Wednesday, November 22, 2006

ANTES DE DORMIR - "histórias cá de casa"

Quando o céu fica vermelho e a lua começa a espreitar,
Quando o sol se vai embora para a vóvó acordar,
Quando a Felicidade diz “adeus” e a Amélia “até amanhã”
Quando corres para a porta e dás o beijinho à mamã
Quando Lola, a vizinha tonta, pára de cantar
E grita o nome dos filhos sem nunca se levantar:

Áaaaaabele , Ábiiiiiindo, Daaalae

Quando o Tétum se deixa de ouvir e começa o Makasae
Quando em redor tudo muda e em silêncio a noite cai
Quando o Toke que nunca vimos nos recorda que ainda lá está
Tooooookê toooooookê toookê
E o galo do Jacob
cacaracácá
E os gatos no telhado
Miau zzzzz zzz zzz

E a Mikrolete a passar
Lagalagalagalaga

Fecha os olhos minha Gui deixa o dia se apagar
Sonha com as nuvens escuras que nos hão-de vir molhar
Sonha com a baleia
E o macaquinho da curva
Sonha com o vento maroto
que te beija e despenteia
sonha com o tronco torto do coqueiro na ladeira
e depois de fechares os olhos
tão castanhos, tão amêndoa
os sons param lá fora
tudo fica suspenso

A Gui dorme

Shhhhhhhhhhh
Cala-te galo do Jacob
Cacaracashhhhhhhhhh
Fecha a boca toke tonto
Tooooooookêshhhhhhhhhhhh
Miaushhhhhhhh
Lagashhhhhhhhhh

A Gui dorme
Até amanhã!

Monday, November 20, 2006

RIP

Ele chama-se Edgar Gonçalves e os amigos chegados definiam-no como Filósofo. Vivia com a irmã numa casa grande em Dili onde apoiavam pessoas que precisavam de cuidados médicos.
Tem 32 anos e foi assassinado ontem. O carro onde viajava com a irmã e duas crianças Timorenses debilitadas, foi parado por um bando de imbecis. Ao defender a irmã foi atingido com ferros e setas. Ensanguentado ainda a conduziu a casa de um amigo colocando-a a ela e ás crianças a salvo. O amigo tentou levá-lo ao hospital mas as estradas bloqueadas com pneus não o permitiram. Quando chegou ao Bairro Pité o Edgar já estava morto.

Um Mineiro. No outro lado do mundo.

Alguém disse que ele morreu como viveu. Que caiu da mesma forma que as pessoas com quem trabalhou e apoiou durante os últimos 2 anos.

Mas não há dignidade numa morte assim.
A comunidade Brasileira em Timor é pequena e constituída essencialmente por voluntários. Este Edgar pertencia à Assembleia de Deus e vivia sem luxos, juntamente com a irmã, um projecto pessoal de ajuda ao seu semelhante, sem olhar a credos religiosos, ou a cores politicas, ou a proveniências geográficas.

Agora está morto. E os amigos Brasileiros choram-no. E quarta vou levá-los a Dili para que eles abracem Elisama, a irmã. E não o fazem hoje porque têm medo. Porque neste momento ninguém entende se este foi um assassinato isolado ou se é a indicação de que as coisas mudaram e a comunidade internacional passou a ser um alvo.

32 anos…

AND WE CAN DANCE...

A noite estava surpreendentemente, agradavelmente, ligeiramente fresca e não havia um mosquito que se aproximasse das pernocas para dar a picadinha da praxe. Era portanto uma noite agradável. Estávamos nos jardins da casa do Bispo de Baucau a assistir a uma cerimónia muito bonita da primeira graduação de Professores Primários, em Timor. As meninas e os meninos tinham togas à maneira Australiana e penteados à maneira Timorense e estavam lindos e felizes rodeados de filhos, mães, pais, primos, todos com o orgulho estampado na cara como convém nestas ocasiões em qualquer parte do mundo. E depois seguiu-se um jantar volante com peixes gigantescos grelhados, e sate de búfalo, de galinha, carnes cozinhadas de toda a maneira e deliciosas que foram tragadas por mim acompanhadas por um breve murmúrio de: “que não seja cão, que não seja cão, ai que não seja cão!!!” E depois foi um espectáculo musical, onde toda a gente cantava e eu corri para ver porque tinha emprestado a minha saia branca a uma das cantoras e quis assegurar-me que ela de facto ficava melhor a mim do que a ela. E ficava! Depois de termos sobrevivido a “Uma paloma branca” cantada por um jovem adorável de sexo indeciso vestindo um casaco 3 números acima enviado pelo irmão que está emigrado – ou como por aqui se diz – um irmão na diáspora, a G. decide que:
-Mamã tenho que dançar. Prrrrreciso de dançar.
E salta para o palco e pula, gira, rebola, maneia-se pula e gira outra vez e a música acaba e ela faz uma vénia – perfeitamente convencida que as palmas eram para ela – e retira-se. Eram 9.30 da noite.
Ás 11.30 com as chinelas da minha filha na mão, a garrafinha de água, a carteira debaixo do braço, sentada numa cadeirita junto ao palco a cair de sono, ainda aguardo que a Srª Dª G. acabe a sua apresentação e me permita recolhê-la para o seu lar… Olho à volta e vejo mais gente na minha condição. A diferença reside no facto de as filhas delas estarem prestes a casar…

DE SOMERSET

Por volta dos 11/12 anos, quando comecei a explorar a “biblioteca” da minha mãe, descobri um livro que deixou sequelas no meu relacionamento com o divino institucionalizado. Numa das obras de Somerset Maugham, “Servidão Humana”, há um menino com um pé boto a quem dizem que a fé move montanhas. E ele reza com muita muita força e ao lermos sentimos a força com que ele reza e pede muito a Deus para lhe curar o pé, mas nada acontece. E eu na minha inocência achei que aquele pé boto justificava muito mais um milagre, do que os sedentos das Bodas de Canan. Eu compreendo que seja o sonho de qualquer anfitrião poder recorrer à previdência divina para resolver problemas de logística, mas entre o pé deformado do órfão a quem davam aos domingos e apenas aos domingos, a parte de cima que se corta ao ovo cozido, e os convivas de Canan, ora não venha o Diabo e escolha, porque o diabo saberíamos nós muito bem o que faria. Imaginar Maria a dizer a Jesus :”Oh filho, anda lá faz um esforço. Já multiplicaste o peixe, o pão, caminhaste sobre água, ressuscitaste Lázaro, curaste não sei quantos leprosos e deves estar cansado, mas a mim apetecia-me tanto uma pinguita. Coisa simples, filho, assim um Casal Garcia, desde que faças isso fresquinho”, pronto, não incute fé.
O V. vem-me comunicar que talvez para a semana não venha trabalhar porque a mãe vai morrer. Mas está assim tão mal? Perguntou-lhe eu. “Sim”- responde – “já comprámos o caixão”. Compraram o caixão? Então mas há sempre esperança, não é? Pode ser que melhore, ás vezes acontece, as pessoas assim subitamente ficam melhorzinhas e ficam connosco mais um tempo, não é? – pergunto-lhe eu. “Não – responde – já tem lá o caixão no quarto agora é só entregar a Deus.”
E eu imagino o terror da mulher. Deitada ali na enxerga, com o caixão ao lado e os filhos e vizinhos dando espreitadelas para ver se a coisa já está acabada. Quer dizer, isto não dá saúde a ninguém. E tenho pena daqueles que crendo ou não crendo no divino institucionalizado não rezam para que a montanha se mova e não se zangam por ela não se mexer, e não gritam e não se revoltam. Porque um dia a mais, um só diazinho a mais, 2 horas, 30 minutos da presença daqueles que vão partir e que sabemos que não voltam, vale uma conversão.

Friday, November 17, 2006

DE MARQUEZ

Falar de Saramago, fez-me lembrar outro escritor.
Há muitos anos atrás no Chile, ao viajar até à outra ponta da ilha de Chiloé, vi o Pacifico.
No jeep viajava também uma das meninas do escritório, Fresia, que aproveitava para visitar a irmã. E deixámo-la algures e fomos para a praia onde não havia areia, e o vento era forte e o Pacifico violento e espumoso e a Rocio pequenina quase voava. E depois fomos procurar Fresia a pé e começa a chover. Descobrimos a casa da irmã e ela abre a porta e sorri com um daqueles sorrisos muito desdentados, típicos de quem não tem dinheiro para pagar dentes de ouro.
A casa era uma cabana entre cabanas e lá dentro havia apenas uma só sala com divisórias em cortina, e no centro, como em todas as casas Chilotes, o fogão de lenha em ferro, e ao lado a dormitar, o bebé gordo da família. A família de Fresia era índia e ela não gostava. E ela vivia triste com isso e tentava escondê-lo não se expondo ao sol e inventando este nome: Fresia. E na sua extrema bondade, Maurício, um dos Directores, depois de ela lhe confessar a tristeza, chamou-a de Fresia e mudou o nome em todos os documentos do escritório. Maurício exilou-se nos Estados Unidos durante o período mais quente de Pinochet e quando resolveu regressar ao Chile, fê-lo a pé. Demorou 2 anos. Um pouco mais tarde comprou metade de uma ilhota e passou 1 ano em meditação numa casota que construiu no topo da ilha; única forma de escapar a uma mulher quase tão autoritária como Pinochet que vivia consumida com ciúmes.
Mas na casa da irmã da Fresia, o frio era grande e ela avivou a fogueira e mudou o óleo da frigideira negra substituindo-o por óleo novo e fritou ovo após ovo. E serviu-nos fatias grossas de pão caseiro ensopadas nos ovos fritos e Nescafe quente. E trouxe os porcos as galinhas os patos e os coelhos para dentro para os proteger do frio e da chuva. E eles saltavam por entre as nossas pernas. Duas galinhas encostaram-se ás minhas costas e adormeceram. O porco deitou-se junto ao fogão julgando-se cão e agindo como tal. E era tudo tão calmo, tão acolhedor apesar da bicheza e tão estranhamente familiar. E pouco depois apercebi-me de onde vinha a familiaridade. Eu era uma personagem de Garcia Marquez num conto de Gracia Marquez numa casa de Garcia Marquez. E gostei e não queria sair dali.
Há pouco soube que Fresia escapou da comunidade e viaja agora pelo mundo espalhando a filosofia Mórmon. Qualquer que seja o Deus, espero que ele lhe dê paz e a faça aceitar-se assim morena e índia. Linda.

Thursday, November 16, 2006

DE SARAMAGO

No domingo, ao reentrar na zona habitada no regresso a Baucau, a estrada é subitamente ladeada por centenas e centenas de velinhas a arder. E são os pequeninos que as acendem, dobrados no chão, com os joelhos a tocarem-lhes as bochechas. E no carro ficamos em silêncio; eu a T. e a G. E o espectáculo é de facto lindo. Ao longo da estrada caminha gente em grupos não sei vindos de onde ou indo para onde; é o 12 de Novembro!
E eu continuo a conduzir, devagarinho, e o silêncio acompanha-nos. Eu fixo a estrada com os olhos muito abertos – o truque que toda a gente conhece – e a T finge-se distraída com o tecido do vestido da G. E a própria G. deixou de falar (mas parece encantada). O cenário não parece real.
E seguem-se velas atrás de velas num contraste enorme com o escuro da noite. Porque aqui o escuro é mais escuro e a noite é mais noite porque as ruas não são iluminadas.
E recordo as imagens da altura, e os rapazes que conheci e que contaram a história na primeira pessoa à volta da mesa da casa dos meus pais e penso no 12 de Maio no 12 de Junho no 12 de Julho, Agosto, Setembro, Outubro, de este ano e entretanto estamos a chegar a Baucau à cidade antiga.
As velas continuam, mas há centenas de pessoas na rua a ocuparem perigosamente a estrada. Á nossa frente uma Anguna cheia de gente, e pela janela vou ouvindo os gritos de “nenek nenek nenek”(devagar, devagar).E há gargalhadas ruidosas e de uma das casas sai musica no volume máximo, e as pessoas caminham vagarosamente à frente do carro, ignorando-o propositadamente e sinto uma pedra a rebolar sobre o tejadilho e a magia desaparece.
Nessa noite, cães foram roubados e pendurados pelo pescoço nas árvores até morrerem – um cão que morra zangado e aflito fica com a carne mais saborosa. Da varanda vi as chamas das velas a elevarem-se quando eram regadas com combustível. E os gritos, as gargalhadas. E numa espiral incontrolável a loucura foi tomando conta da noite, até os corpos cansados se refugiarem em casa com medo da luz da madrugada. E isto não foi uma noite de catarse. Foi uma noite um pouco mais excitada do que o habitual.
E à tarde, conduzindo lentamente de regresso a casa vejo um velho de lipa e vergasta na mão a tentar bater num rapaz que ri ri afastando-o apenas com um braço. E o velho continua o caminho e leva com pedras pequenas atiradas certeiramente pelo mesmo rapaz e os amigos e volta-se e tudo recomeça…
Timor , agora, é o “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago. O único livro dele de que gostei, não sonhando nunca vê-lo ir a cena num palco tão real.

Sunday, November 12, 2006

CEUZETA

apenas para te informar que um dos gatos (o unico que se deixou apanhar) fugiu.
Foi lindo!
O pior foi informar a J.

Mas ao fim do dia, na praia, ouvimos um grande splash. E a cerca de 200m, duas baleias gigantescas passeavam calmamente, mergulhando na agua e projectando-a rodeando-se de espuma branquinha branquinha.

Quem precisa de gatos? Bahhhhhh

Friday, November 10, 2006

MIAU

Hoje vamos adoptar dois gatos.
São da J.
A J., mudou-se temporariamente para Dili, mas depois vai para Same. Após muito debate chegámos à conclusão que dado os gatos serem Lorosae, ao serem mudados para Dili poderiam vira a ter problemas com os gatos Loromono lá da cidade.
Assim ficamos nós com eles até a J. se mudar para Same.
Antevendo problemas – há gatos um bocado esquisitos que não gostam de ser fechados em caixas e levados em automóveis – recebemos numa caixa linda feita pelas mulheres de Maubara, dois comprimidos para misturar na comida dos bichinhos e os adormecer.
Estou aqui a olhar para eles. A olhar para os comprimidos.
Quer dizer, eu bem que poderia bater-lhes – não com muita força – na cabeçorra, e deixá-los meio tontos. Enfiava-os num saco, atirava-os para o porta bagagens, chegava a casa abria uma gingerbeer e tomava eu os comprimidos.
Quer dizer, o pior que me poderá acontecer é começar subitamente a cuspir bolas de pêlo, não?
E depois, daqui a 3 ou 4 dias, quando sentir um odor estranho no carro, abro o porta bagagens, descubro o saco e … ups!

Wednesday, November 08, 2006

THE TOLL


São 4 horas da manhã e não consigo dormir. O cansaço é enorme e tenho uma reunião dentro de 4 horas, mas não consigo dormir.
3 “tentativas” de assalto fizeram finalmente o seu efeito em mim, e cada pequeno ruído é um sobressalto.
Hoje a G. pôs o meu telefone num copo a beber chá de gengibre e o facto de me saber sem possibilidade de contactar alguém, caso precise, não convida o sono.

As cortinas movimentam-se com a ventoinha, o tecto estala com o calor, o luar projecta sombras, a minha imaginação cria enredos que deveriam ser comercializados. E sinto-me cansada e dói-me o corpo, mas não consigo dormir.

Amanhã vou dormir na pousada. Preciso de pelo menos uma boa noite de sono; e ao dizer isto, tento visualizar a porta e lembrar-me de como são as fechaduras.

Preciso do meu quarto, na L., onde se dorme de janelas abertas no Inverno para se sentir o vento na cara e ouvir melhor a chuva. Por duas noites, só que fossem duas noites…

Sinto-me cansada. Tão cansada…

Tuesday, November 07, 2006

AND ONCE MORE..

Deitada na cama por volta das 6 da tarde a conversar com a G. – como foi o dia? Gostas da nova nanny? Que canção aprendeste com a Luisinha? E bla bla bla e todo o tempo a pensar “tenho que me levantar e fechar a porta da entrada”, “tenho que me levantar e ir ver se a porta está fechada”, então mas e achas que a nanny é mesmo divertida? Queres que ela fique? “Tenho que me levantar e ir ver o raio da porta”, quando nisto (ao tempo que eu queria usar esta expressão) se ouve uma pequena agitação lá fora e ouço chamar pela G. – nunca ninguém chama por mim, só por ela.
E lá nos levantamos e na varanda está a D. Amélia com o gato de madeira onde colocamos as sementes para os pássaros, na mão, mais ou menos em fanicos.

Novidade das novidades – entrou o maluco oficial da cidade na nossa varanda. Arrancou o gato, os vizinhos viram-no e gritaram pela D. Amélia que veio a correr de lá de casa dela, seguida pelo marido (que me fez um leque muito lindo em sândalo com o meu nome recortado), seguido por um dos filhos que é coxo e a sobrinha que é cega de um olho (juro!). O maluco assustou-se. Corre, atira com o gato para o chão, a Amélia alcança a varanda, praticamente em voo (imagino eu) agarra-se ao estendal e empurra-o para o quarto de arrumos. Tranca a porta e muito placidamente chegamos nós. Lá fora um mar de gente. Foi o grande acontecimento do dia.
Sem perceber nada do que se passou e sem fazer muito esforço para entender pergunto-lhe:
-Então, este desta vez quem é ?
-É irmão do outro – e põe o dedo na testa e roda-o de cima para baixo (porque estamos no hemisfério sul).
- Do outro? Do das flores?
- Sim. Rouba tudo. Mas não entra nas casas. Só rouba o que está nas varandas. Rouba roupa, até calcinhas para vender para o vinho. A irmã vive ali em cima.
- Ahhh! Então mas é bêbedo ou maluco?
- É mais maluco.
- Ahhh, coitada da irmã, deve sofrer com isto, não é?
- Naaa. Quer dizer, um bocado, quando não está bêbeda…

Friday, November 03, 2006

UFA...


Na praia ouve-se uma voz grossa a gritar:

- OOOhhhhh Roooocha! O Gomes telefonou. Já aí vem a viatura.

Afinal o Agente Gomes está cá! E trouxe a viatura! Que alivio!

QUEM ANDA A ESPALHAR CARTAS PELAS RUAS DE DILI?



Thursday, November 02, 2006

BUBUHA

O homem entrou no meu escritório a medo, torcendo um boné nas mãos e falando baixinho. Achei que não o conhecia. Ao levantar-me para o cumprimentar tropecei num cabo e reparei nos sapatos dele. Nunca tinha visto uns sapatos tão velhos. Por dentro umas meias grossas, nas pernas uma fazenda forte, grossa, áspera. Uma camisa florida triste com gola coçada. Por entre os murmúrios distingo a palavra Bubuha e reconheço-o como sendo o professor de lá. Atrás vejo dois olhitos pequenos que espreitam e quando se cruzam com os meus escondem-se. Pergunto se o menino veio com ele. Que sim, e depois noto que ficou receoso de isso me desagradar.
Bubuha fica longe, no sub distrito de Baguia. Quando chove fica isolada e por isso construímos esta escola lá. 4 paredes com 3 divisórias. Chão em cimento, meias paredes, telhado em zinco. Em Bubuha há 6 mesinhas desconjuntadas para 60 crianças. Este senhor veio de lá até aqui pagando o seu próprio transporte – 3 horas de viagem pela montanha. Este senhor juntamente com outra senhora ensina 60 crianças e não é pago pelo Governo, nem pela Igreja. É professor voluntário. Um professor voluntário trabalha para a sua comunidade e é pago por ela. Raramente é pago em dinheiro e raramente é pago regularmente. Meio saco de arroz… um quarto de saco de arroz…
Em Bubuha existe um pedaço de um quadro preto do tempo Indonésio, onde o professor escreve. Com muita cerimónia e cuidado pergunta-me sobre a possibilidade de arranjar equipamento escolar. “Só mesas e cadeiras”- diz. “E se se pudesse ter sentina…” acrescenta. Os olhitos pequeninos continuam escondidos atrás dele. Eu trato-o por Sr. Professor no inicio e no fim de cada frase que digo. Digo-lhe que não me esqueci que me pediu um dicionário e remexo desesperadamente no conteúdo da minha estante e encontro uma gramática usada e o dicionário do Sr.José. Entrego-lhos. E falo-lhe de valores e estratégias de financiamento e ele dá a opinião e bebe o café dele e fala e eu digo "Ah sim Sr. Professor, não sabia Sr. Professor" e os olhitos pequeninos começam a aparecer. Já não se vê apenas um. Já se vêem os dois. E uma mãozita surge do nada e apoia-se no ombro do pai e olha-me directamente. E o narizito levanta-se no ar e as costas endireitam-se. E todo o corpinho parece dizer "sim, sim este que te está a ensinar coisas é o MEU pai". E terminamos a conversa e eu agradeço-lhe da mesma forma com que ele me abordou no inicio - com muita cerimonia e cuidado. E ele parte sem promessas, mas pela mão leva um menino vaidoso vaidoso do seu pai. E não ha nada mais fantástico do que olharmos para o pai de camisa triste, e senti-lo grande grande...

Wednesday, November 01, 2006

SECOND CHANCES


Tenho uma máquina fotográfica nova.
Da mesma marca mas o modelo mais recente.
Tem todas as coisas boas que a outra tinha e mais umas tantas.
A primeira foi destruída pelas formigas. Quando a desmontaram em Bali, por dentro encontraram milhares de pontinhos pretos que eram formiguinhas mortas. E eu espero que elas, as formiguinhas, tenham tido uma morte lenta e dolorosa. Não sei se lá na Sony em Bali rezaram pelo espírito das formiguinhas mortas – porque para os Balineses tudo o que é bicho já foi um primo, um tio, um bisavô. Mas como os corpo destas formiguinhas mortas viajaram de avião de Dili para Dempasar, e como também segundo os Balineses, os espíritos não viajam sobre água, resta-me a esperança que a abertura da minha máquina não tenha causado aos funcionários um aperto no coração.

Mas o importante é que tenho uma máquina fotográfica nova.
Da mesma marca mas o modelo mais recente.
Tem as coisas boas que a outra tinha e mais umas tantas. E eu gostei da sensação de lhe pegar e sentir uma certa familiaridade, de saber lidar com aquilo sem recorrer ao manual. E foi a primeira vez que pequei numa coisa igual ao que já tinha tido mas melhor, muito melhor e se bem que estranhei o formato ser ligeiramente diferente, de não a sentir tão confortável na mão, já gosto mais desta do que da outra.

Acho que deve ser isto que se sente quando se casa pela segunda vez...