Friday, November 17, 2006

DE MARQUEZ

Falar de Saramago, fez-me lembrar outro escritor.
Há muitos anos atrás no Chile, ao viajar até à outra ponta da ilha de Chiloé, vi o Pacifico.
No jeep viajava também uma das meninas do escritório, Fresia, que aproveitava para visitar a irmã. E deixámo-la algures e fomos para a praia onde não havia areia, e o vento era forte e o Pacifico violento e espumoso e a Rocio pequenina quase voava. E depois fomos procurar Fresia a pé e começa a chover. Descobrimos a casa da irmã e ela abre a porta e sorri com um daqueles sorrisos muito desdentados, típicos de quem não tem dinheiro para pagar dentes de ouro.
A casa era uma cabana entre cabanas e lá dentro havia apenas uma só sala com divisórias em cortina, e no centro, como em todas as casas Chilotes, o fogão de lenha em ferro, e ao lado a dormitar, o bebé gordo da família. A família de Fresia era índia e ela não gostava. E ela vivia triste com isso e tentava escondê-lo não se expondo ao sol e inventando este nome: Fresia. E na sua extrema bondade, Maurício, um dos Directores, depois de ela lhe confessar a tristeza, chamou-a de Fresia e mudou o nome em todos os documentos do escritório. Maurício exilou-se nos Estados Unidos durante o período mais quente de Pinochet e quando resolveu regressar ao Chile, fê-lo a pé. Demorou 2 anos. Um pouco mais tarde comprou metade de uma ilhota e passou 1 ano em meditação numa casota que construiu no topo da ilha; única forma de escapar a uma mulher quase tão autoritária como Pinochet que vivia consumida com ciúmes.
Mas na casa da irmã da Fresia, o frio era grande e ela avivou a fogueira e mudou o óleo da frigideira negra substituindo-o por óleo novo e fritou ovo após ovo. E serviu-nos fatias grossas de pão caseiro ensopadas nos ovos fritos e Nescafe quente. E trouxe os porcos as galinhas os patos e os coelhos para dentro para os proteger do frio e da chuva. E eles saltavam por entre as nossas pernas. Duas galinhas encostaram-se ás minhas costas e adormeceram. O porco deitou-se junto ao fogão julgando-se cão e agindo como tal. E era tudo tão calmo, tão acolhedor apesar da bicheza e tão estranhamente familiar. E pouco depois apercebi-me de onde vinha a familiaridade. Eu era uma personagem de Garcia Marquez num conto de Gracia Marquez numa casa de Garcia Marquez. E gostei e não queria sair dali.
Há pouco soube que Fresia escapou da comunidade e viaja agora pelo mundo espalhando a filosofia Mórmon. Qualquer que seja o Deus, espero que ele lhe dê paz e a faça aceitar-se assim morena e índia. Linda.

1 Comments:

Blogger Eva Lima said...

E fiquei assim:) sem jeito, de tanto gostar.
Como é bom ler-te, aqui, numa tarde de chuva.

beijos

11/19/2006 4:59 pm  

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