Monday, November 20, 2006

DE SOMERSET

Por volta dos 11/12 anos, quando comecei a explorar a “biblioteca” da minha mãe, descobri um livro que deixou sequelas no meu relacionamento com o divino institucionalizado. Numa das obras de Somerset Maugham, “Servidão Humana”, há um menino com um pé boto a quem dizem que a fé move montanhas. E ele reza com muita muita força e ao lermos sentimos a força com que ele reza e pede muito a Deus para lhe curar o pé, mas nada acontece. E eu na minha inocência achei que aquele pé boto justificava muito mais um milagre, do que os sedentos das Bodas de Canan. Eu compreendo que seja o sonho de qualquer anfitrião poder recorrer à previdência divina para resolver problemas de logística, mas entre o pé deformado do órfão a quem davam aos domingos e apenas aos domingos, a parte de cima que se corta ao ovo cozido, e os convivas de Canan, ora não venha o Diabo e escolha, porque o diabo saberíamos nós muito bem o que faria. Imaginar Maria a dizer a Jesus :”Oh filho, anda lá faz um esforço. Já multiplicaste o peixe, o pão, caminhaste sobre água, ressuscitaste Lázaro, curaste não sei quantos leprosos e deves estar cansado, mas a mim apetecia-me tanto uma pinguita. Coisa simples, filho, assim um Casal Garcia, desde que faças isso fresquinho”, pronto, não incute fé.
O V. vem-me comunicar que talvez para a semana não venha trabalhar porque a mãe vai morrer. Mas está assim tão mal? Perguntou-lhe eu. “Sim”- responde – “já comprámos o caixão”. Compraram o caixão? Então mas há sempre esperança, não é? Pode ser que melhore, ás vezes acontece, as pessoas assim subitamente ficam melhorzinhas e ficam connosco mais um tempo, não é? – pergunto-lhe eu. “Não – responde – já tem lá o caixão no quarto agora é só entregar a Deus.”
E eu imagino o terror da mulher. Deitada ali na enxerga, com o caixão ao lado e os filhos e vizinhos dando espreitadelas para ver se a coisa já está acabada. Quer dizer, isto não dá saúde a ninguém. E tenho pena daqueles que crendo ou não crendo no divino institucionalizado não rezam para que a montanha se mova e não se zangam por ela não se mexer, e não gritam e não se revoltam. Porque um dia a mais, um só diazinho a mais, 2 horas, 30 minutos da presença daqueles que vão partir e que sabemos que não voltam, vale uma conversão.

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