Wednesday, February 28, 2007

COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE?

A L. telefona a perguntar se posso ir no dia seguinte buscar ao hospital uma aluna dela que teve um parto prematuro após uma grave crise de hipertensão e uma gravíssima infecção urinária, e vai ter alta do Hospital. Na cama do hospital encontro uma menina de ar triste deitada de costas voltadas para a bébé dela. A bébé era uma coisinha pequenina linda de mãozinhas minúsculas e uma cabecinha redondinha como devem ter quase todos os recém nascidos, imagino eu, porque não vejo um há anos. E peguei-lhe ao colo e tive a sensação de que poderia ficar assim a olhar para ela o dia inteiro, tão perfeita, tão quieta, como se tivesse medo de incomodar. E colocamo-la nos braços da mãe para lhe tirarmos a foto da praxe, e ela não a encosta a si, não a olha e muito a custo arrancamos-lhe um sorriso daquela carinha morena triste, triste. Aos poucos descubro os detalhes da história; ela está no último ano – será professora primária lá para o Verão, o pai da criança era colega mas estava um ano avançado e no princípio do ano foi-lhe oferecido trabalho na terra dele e ele aceitou. E desde então nunca mais se viram. E ela é de longe também, do outro lado da ilha, e ficou aqui sozinha, grávida, duplamente sozinha, apesar dos colegas que a acompanharam rotativamente no hospital, meninos da terra dele, meninas da terra dela, e que oferecem à bébé o sorriso que a mãe não tem. Mas não há uma gota de maldade naquela menina. Há uma tristeza que de tão grande se tornou numa coisa física; numa coisa que ela sente no corpo.
E volto ao trabalho a pensar naquilo e pego no telefone e falo com um dos superintendentes de educação, que me dá o número do colega dele lá da terra do rapaz, bem longe, no enclave. E o dito senhor atende num Português que poderia ser de Coimbra e digo-lhe mais ou menos assim: tem aí um professor que precisa de saber que tem uma filha. È muito linda. Chama-se Leila, como a médica que a assistiu e Maria, como a Santa a quem a mãe rezou. E a mãe está sozinha e está triste. E ele diz mais ou menos assim: vou falar com o Director dele e dizer-lhe para lhe dar uma licença especial. O rapaz vai ter de andar dois dias a pé para chegar ao meu escritório, por causa da chuva, mas vamos atirá-lo para o barco de sexta. E ao fim do dia a L. dá a notícia à menina, deitada no chão, em cima de umas tábuas, com panos a fingir de colchão, uma almofada de cetim lilás que ela abraça repetidamente e o rostito alegra-se e sai um sorriso e depois outro e ela vira-se para o lado e compõe o cobertor do bébé e sorri outra vez e nas paredes passeiam ratos enormes, pretos com caudas compridas. E sinto-me com vontade de dizer: “Marta, vem para minha casa”, e na minha cabeça sem que ela abra a boca ouço a resposta “Não, porque ele vem-me procurar aqui.”

Thursday, February 22, 2007

DE CAEIRO



"Se eu pudesse trincar a terra toda E sentir-lhe um paladar, Seria mais feliz um momento ... Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso tomo a infelicidade com a felicidade Naturalmente, como quem não estranha Que haja montanhas e planícies E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo Na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Assim é e assim seja ..."

Tuesday, February 20, 2007

RECREIO

Monday, February 19, 2007

WE WILL ALWAYS HAVE PARIS...

Quando conheci os primeiros Timorenses em Portugal, há 15 anos atrás o que mais me marcou foi o facto de todos eles, separadamente, terem dito que o odor preferido era o da terra molhada. E eu achei que essa coincidência era fantástica. E pensei que só um povo especial pode partilhar esse tipo de sensações que nos vem da memória olfactiva.
E cheirei a terra molhada várias vezes e não consegui sentir nada a não ser uma certa melancolia, uma quase tristeza que não conseguia explicar. E ainda hoje passar por um jardim que acaba de ser regado, devolve-me essa sensação; e eu apresso o passo.

Queria que a minha filha guardasse na memória o cheiro de Timor depois da chuva. Que guardasse na memória os sons dos tambores tocados pelas mulheres enquanto dançam. Que crescesse consciente de pertencer a dois mundos e ensinei-a a dizer que é vaidosa de ser Timorense e a explicar porquê. Levei-a a ver as danças dos liurais enquanto outros assistiam ás condecorações no estádio. Expliquei-lhe porque marchavam os jovens com o lenço ao pescoço, representando os pais que morreram na luta. E as mulheres de rosto inexpressivo vestindo restos de fardas que constituíram a única roupa que usaram durante anos.

Em Dili a K. andava de bicicleta ás 4 da tarde, quando foi bloqueada por um táxi com 5 rapazes que lhe atiraram a bicicleta ao mar, a apalparam, e partiram levando-lhe o telefone e as chaves. Menos de uma semana depois ao caminhar com mais 3 pessoas, já de noite, numa zona aparentemente tranquila, encostaram-lhes uma catana ao pescoço e levaram tudo o que transportavam com eles. Regressou à Austrália. Transtornada. Não sabe se volta. Não sabe se consegue voltar.

Por vezes penso que as imagens que a minha filha guardará na memória, não serão das tardes passadas na praia, os sons dos tambores, os macaquinhos da curva, o coqueiro torto da ladeira, o toke a cantar. Serão os rituais nocturnos de colocar os cadeados nas portas, o não dormir na cama dela, as trancas de madeira na porta do meu quarto, o fechar as janelas do carro quando entramos em determinadas estradas, o esconder-se entre os bancos quando a policia nos manda recuar por haver pedrada na rua um pouco mais abaixo.

Acabei a leitura do “Timor antes do futuro” de Mário Carrascalão e iniciei a Biografia de Konis Santana do José Mattoso e subitamente senti que não conseguia continuar a ler. Senti dores nas articulações e um cansaço tão grande e uma tristeza tão profunda igual à que se sente quando amamos alguém e não percebemos porque a outra pessoa não corresponde. E sinto que amo esta terra e ela não me devolve o afecto. E que respeito este povo mas ele não se respeita. E pergunto-me mais uma vez mas que faço eu aqui? Mas que faço eu aqui? E hoje não sei responder. E muito a la Scarlett Ohara murmuro para mim mesma: “amanhã, amanhã penso nisso”, e viro-me para o outro lado e tento dormir. Mas a cada noite que passa o sono demora cada vez mais tempo a chegar.

Thursday, February 15, 2007

..PORQUE DEUS CASTIGA OS PECADOS PEQUENOS....

Depois de irmos aos serviços médicos Portugueses em Dili onde trabalham duas Senhoras deliciosas, e já descansada com o diagnóstico dado á Gui que inexplicavelmente perdeu sangue pelo ouvido e depois ainda de termos feito uma série de futilidades próprias de quem viaja à cidade grande, regressamos ao carro e descobrimos um pneu maliciosamente furado.
O M., que fez a gentileza de nos acompanhar desde Baucau a Dili, desempenha em pleno o seu papel de macho latino e encarrega-se do serviço. O M. que é praticamente padre e em quem eu coloco grandes esperanças de que venha a ser Bispo ou até Cardeal, e só por isso o aturo. O M. que sabe as Epistolas todas – não se limitando à de S. Paulo aos Coríntios, bom o M., pragueja como um carroceiro quando se dedica a desatarraxar porcas! 1h15m depois, sim eu disse uma hora e quinze minutos depois, o pneu está colocado e a noite aproxima-se. E eu penso que não quero viajar sem um pneu de reserva e considero a possibilidade de ficarmos em Dili apesar de também não termos cuecas de reserva. Mas Dili tem 2000 novos habitantes estrangeiros e não há um quartinho livre por miserável que seja. E acabamos por decidir voltar a Baucau.
A metade da metade do caminho, o mesmo pneu fura-se novamente. Estamos no meio da montanha sem rede de telemóvel e no meio de um escuro daqueles escuros verdadeiros como já não se vê no mundo ocidental dos candeeiros de rua e claro, sem pneu de reserva. Fazemos talvez uns 10km nesta situação sempre a olhar para o telefone do M, que tem um Garfield sorridente. (eu juro que o vi a rir-se de nós).
Pergunto ao M., um homem de Deus, se a ocasião não se proporcionaria a uma oração. Assim tipo concede-nos Senhor a Graça de um tracinho na rede do telefone. Diz que não. E ele lá sabe.

...EM SUMA...

Fomos salvos pelo Padre.M a quem o M telefonou e que vem de Manatuto com o motorista. O plano consistia em dormirmos na casa do Pdr M e do M. enquanto o A. ía buscar a roda do carro de um primo de um vizinho de não sei quem que tem um Vitara como o meu e trocá-la e trazer o carro para Manatuto e devolvê-la no dia seguinte após termos concertado o pneu. É lógico que as coisas não correram bem. Eu uso pneus R15 e os dele são R16 e depois de se constatar isto já de volta a Manatuto, lembramo-nos dos congelados no porta-bagagem. E voltamos à aldeia, já o meu plano B tinha chegado. E partimos para Baucau depois do M. se ter oferecido para ficar em Manatuto e levar o carro já com roda no dia seguinte. Eram 2.30 da manhã.
E isto foi só um dos eventos da semana que começou com:
- Queimadura de 2ºgrau nos ombros causadas pelo sol enquanto ensinava a Gui protegida com a sua t-shirt à prova de UV, a nadar na praia;
- Queda com os pés molhados nas escadas da casa de banho aparada pela bochecha esquerda do meu rabiosque que neste momento parece pertença de uma guineense sem mistura…
- Infecção na perna causada pela picada de um mosquito;
- Ameaça de greve no escritório porque os funcionários querem pagamento extra por se levantarem uma vez ás 6 da manhã de 2 em 2 meses.
- Vómitos da gui por causa do leite estragado;
- Ouvido da Gui a sangrar e respectivas viagens a Dili;
- Telemóvel que deixa de funcionar;
- Compra forçada de um novo telemóvel muito muito feio.
- Leitura por falta de alternativa do “Big-easy” da Clara Pinto Correia
E se tudo foi muito mau, ler o “Big-easy”, em especial o seu prefácio, foi de facto uma experiência violenta.

Friday, February 09, 2007

AINDAS...

Sempre achei que ensinar era algo quase sagrado.
Assim uma espécie de actividade divina.
De cada vez que me cruzei com um bom professor, tratei-o com o respeito com que se tratam os ícones. E mostrava esse respeito aprendendo sofregamente o que me tentavam ensinar. Mas eles não foram muitos. E as minhas boas notas limitaram-se a 3 ou 4 disciplinas… Mas cada um desses Professores, acompanhou-me sempre. E por causa deles, decidi que nunca seria professora. Porque tive a noção que me faltava a capacidade para cativar; um cativar muito parecido ao da raposa. Muitos muitos anos mais tarde, já a trabalhar numa Agência das Nações Unidas, e quando tentávamos criar um sistema de selecção para os conselheiros que iriam ter funções de capacitação no Governo de Timor, o então meu chefe de projecto, boicotando toda a seriedade da reunião, afirma que não precisamos de entrevistas, de análises de Cvs, de nada. Bastava uma simples amostra de sangue. Porque capacitar é ensinar e para ensinar ou se tem o gene ou não se tem. E mais nada.
Faço, entre outras coisas, a gestão de uma equipa de Timorenses que tem como função capacitar 400 professores ao longo de dois anos. A maioria desses professores é de zonas remotas. Algumas ficam isoladas na época da chuva, mas nós vamos lá. E os professores gostam e demonstram-no participando. Demonstram-no caminhando 3 a 4 horas a pé para chegarem ás 8 da manhã ao local mais ou menos equidistante onde se reúnem com os colegas da mesma zona e recebem a formação. Depois regressam ás suas escolas e trabalham horas extras para compensar o tempo que roubaram aos meninos enquanto estiveram fora da sala de aula. O que eles não sabem é que a equipa que se desloca na pick up moderna, que é recolhida em casa antes de partir, que foi paga durante um ano para estar a aprender o que lhes estão a ensinar, passou horas na véspera de cada formação a exigir mais dinheiro para pequeno almoço, tempo extra de descanso, a recusar-se a almoçar com os professores que treinam – os mesmos que quando os formadores estão a ser recolhidos em casa, vão já na segunda ou terceira hora de caminhada. E tenho momentos em que me pergunto: que faço eu aqui? Onde estão as palavras que eu não sei usar e que fazem as pessoas sentir que há trabalhos que não são empregos, são missões? Porque estou eu no outro lado do mundo, longe dos que gosto, onde apanhei Dengue, Febre Tifóide, assaltos, escorpiões, metade do salário do emprego anterior, e acordo por vezes com um buraco na alma que faz o Gin parecer uma boa alternativa ao leite magro? Será porque sinto que há de facto trabalhos que não são empregos, são missões? Porque metade do salário anterior continua a ser um bom salário? Acho que não. Acho que alguém deve respeitar quem caminha 4 horas para descobrir como deve organizar a sala de aula, para descobrir o que Piaget disse sobre como crescem os meninos e depois voltar á sala de aula sem mesas ou mesmo giz e aplicar esse conhecimento. Acho que gente assim merece respeito. E acordo sempre com a esperança de que é hoje, hoje, que vou descobrir as palavras que farão esta equipa compreender isso.
Mas neste preciso momento, despedi-los também não me parece má ideia….

Wednesday, February 07, 2007

DESAMORES E OUTRAS COISAS

A G. vomita vomita e diz que não gosta dos sabores dos cereais e eu insisto com ela mas quando olho para a taça vejo-os a boiar em leite azedo. A A. deu-lhe o leite estragado e eu sei que não foi um acidente. Se ainda existe comida e mais ninguém a vai comer, dá-se à criança. Explicar o cuidado que se deve ter com alguém de 4 anos não faz sentido. O tratamento que é dado oscila entre a total veneração - sempre ao colo, alguém sempre com um prato na mão a dar comida na boca, obesas da papa mas desnutridas – à negligência – o andar sempre nú ou com apenas uma blusinha, sempre descalços ao lado dos pais relativamente bem apresentados, uma dieta de caldo de arroz pela manhã e arroz uma a duas vezes por dia com uma quantidade mínima de vegetais muito raramente acompanhada de carne ou peixe num local que é uma ilha.
No quarto da G. encontro invariavelmente a botija de gás vazia, os insecticidas, os detergentes, as vassouras, os baldes. É um quarto em que a A. despeja tudo o que deve ser armazenado. E é-lhe totalmente incompreensível porque tem uma criança a divisão maior quando essa divisão não serve para mais nada. Porque tem uma cama para ela? Porque lhe cozinho refeições quando não há mais ninguém para comer. Porque lhe lavo o prato em água fervida, porque lhe não dou água da torneira. E quando a ensino e lhe digo tem que fazer igual aos seus meninos, vê como eles têm a barriguinha grande são bichinhos da água. Mas tudo é recebido com um rosto vazio, aceite porque sou estrangeira e estou a educar uma filha parecida aos netos dela à maneira estrangeira. São manias de estrangeiro e não necessidades de criança. Os meninos da vizinhança passam as horas aos saltos de catana na mão. Nunca são chamados para uma refeição. As meninas trabalham como crescidas e as mães sentam-se na varanda a mascar. E com os dentes vermelhos da masca falam-lhes rápido em Makasae e elas de cabelinhos emaranhados, rostinhos sujos, roupinhas quase inexistentes saltam a toque de caixa carregando irmãos ao colo pouco menores do que elas. E um dia vão fazer igual se o ciclo não for interrompido.

É preciso capacitar o afecto.
Ás vezes o amor tem que se aprender.