Thursday, November 16, 2006

DE SARAMAGO

No domingo, ao reentrar na zona habitada no regresso a Baucau, a estrada é subitamente ladeada por centenas e centenas de velinhas a arder. E são os pequeninos que as acendem, dobrados no chão, com os joelhos a tocarem-lhes as bochechas. E no carro ficamos em silêncio; eu a T. e a G. E o espectáculo é de facto lindo. Ao longo da estrada caminha gente em grupos não sei vindos de onde ou indo para onde; é o 12 de Novembro!
E eu continuo a conduzir, devagarinho, e o silêncio acompanha-nos. Eu fixo a estrada com os olhos muito abertos – o truque que toda a gente conhece – e a T finge-se distraída com o tecido do vestido da G. E a própria G. deixou de falar (mas parece encantada). O cenário não parece real.
E seguem-se velas atrás de velas num contraste enorme com o escuro da noite. Porque aqui o escuro é mais escuro e a noite é mais noite porque as ruas não são iluminadas.
E recordo as imagens da altura, e os rapazes que conheci e que contaram a história na primeira pessoa à volta da mesa da casa dos meus pais e penso no 12 de Maio no 12 de Junho no 12 de Julho, Agosto, Setembro, Outubro, de este ano e entretanto estamos a chegar a Baucau à cidade antiga.
As velas continuam, mas há centenas de pessoas na rua a ocuparem perigosamente a estrada. Á nossa frente uma Anguna cheia de gente, e pela janela vou ouvindo os gritos de “nenek nenek nenek”(devagar, devagar).E há gargalhadas ruidosas e de uma das casas sai musica no volume máximo, e as pessoas caminham vagarosamente à frente do carro, ignorando-o propositadamente e sinto uma pedra a rebolar sobre o tejadilho e a magia desaparece.
Nessa noite, cães foram roubados e pendurados pelo pescoço nas árvores até morrerem – um cão que morra zangado e aflito fica com a carne mais saborosa. Da varanda vi as chamas das velas a elevarem-se quando eram regadas com combustível. E os gritos, as gargalhadas. E numa espiral incontrolável a loucura foi tomando conta da noite, até os corpos cansados se refugiarem em casa com medo da luz da madrugada. E isto não foi uma noite de catarse. Foi uma noite um pouco mais excitada do que o habitual.
E à tarde, conduzindo lentamente de regresso a casa vejo um velho de lipa e vergasta na mão a tentar bater num rapaz que ri ri afastando-o apenas com um braço. E o velho continua o caminho e leva com pedras pequenas atiradas certeiramente pelo mesmo rapaz e os amigos e volta-se e tudo recomeça…
Timor , agora, é o “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago. O único livro dele de que gostei, não sonhando nunca vê-lo ir a cena num palco tão real.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Olá.
Gostei do seu blog. Vc é de Portugal e mora no Timor Leste. É isso mesmo??
Bjs

11/18/2006 5:55 pm  
Blogger carla alexandra vendinha said...

é isso mesmo! obrigada pela visita.

11/20/2006 6:04 am  

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