COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE?
A L. telefona a perguntar se posso ir no dia seguinte buscar ao hospital uma aluna dela que teve um parto prematuro após uma grave crise de hipertensão e uma gravíssima infecção urinária, e vai ter alta do Hospital. Na cama do hospital encontro uma menina de ar triste deitada de costas voltadas para a bébé dela. A bébé era uma coisinha pequenina linda de mãozinhas minúsculas e uma cabecinha redondinha como devem ter quase todos os recém nascidos, imagino eu, porque não vejo um há anos. E peguei-lhe ao colo e tive a sensação de que poderia ficar assim a olhar para ela o dia inteiro, tão perfeita, tão quieta, como se tivesse medo de incomodar. E colocamo-la nos braços da mãe para lhe tirarmos a foto da praxe, e ela não a encosta a si, não a olha e muito a custo arrancamos-lhe um sorriso daquela carinha morena triste, triste. Aos poucos descubro os detalhes da história; ela está no último ano – será professora primária lá para o Verão, o pai da criança era colega mas estava um ano avançado e no princípio do ano foi-lhe oferecido trabalho na terra dele e ele aceitou. E desde então nunca mais se viram. E ela é de longe também, do outro lado da ilha, e ficou aqui sozinha, grávida, duplamente sozinha, apesar dos colegas que a acompanharam rotativamente no hospital, meninos da terra dele, meninas da terra dela, e que oferecem à bébé o sorriso que a mãe não tem. Mas não há uma gota de maldade naquela menina. Há uma tristeza que de tão grande se tornou numa coisa física; numa coisa que ela sente no corpo.
E volto ao trabalho a pensar naquilo e pego no telefone e falo com um dos superintendentes de educação, que me dá o número do colega dele lá da terra do rapaz, bem longe, no enclave. E o dito senhor atende num Português que poderia ser de Coimbra e digo-lhe mais ou menos assim: tem aí um professor que precisa de saber que tem uma filha. È muito linda. Chama-se Leila, como a médica que a assistiu e Maria, como a Santa a quem a mãe rezou. E a mãe está sozinha e está triste. E ele diz mais ou menos assim: vou falar com o Director dele e dizer-lhe para lhe dar uma licença especial. O rapaz vai ter de andar dois dias a pé para chegar ao meu escritório, por causa da chuva, mas vamos atirá-lo para o barco de sexta. E ao fim do dia a L. dá a notícia à menina, deitada no chão, em cima de umas tábuas, com panos a fingir de colchão, uma almofada de cetim lilás que ela abraça repetidamente e o rostito alegra-se e sai um sorriso e depois outro e ela vira-se para o lado e compõe o cobertor do bébé e sorri outra vez e nas paredes passeiam ratos enormes, pretos com caudas compridas. E sinto-me com vontade de dizer: “Marta, vem para minha casa”, e na minha cabeça sem que ela abra a boca ouço a resposta “Não, porque ele vem-me procurar aqui.”