
A menina do lado sou eu, com a idade da minha filha.
Acho que o cabelo deve ter sido seco pelo meu pai, acho que era sempre ele que o fazia e punha-me aquele ganchinho de lado. O vestido era de um tecido cru e com o tempo começou a apertar-me na barriga e a limitar-me o movimento dos braços, mas eu gostava muito dele e tenho-lhe memórias de festas associadas. Acho que toda a gente tem um vestido assim; daqueles que se toca no tecido e se sentem coisas boas apesar de as não recordarmos com detalhe.
A foto é de um casamento, claro. Só nessas fotos se fica assim hirto a olhar para a frente meio-assustada. E recordo-me que era de uma amiga da minha mãe, também professora, que não era daqui. Era a única crescida que eu conhecia que tinha um namorado e eu achava que ele era também meu namorado porque supunha eu que as pessoas tinham cada uma apenas uma função. E no dia do casamento, seguindo, se não me engano, uma tradição da terra, eles caminharam pelas ruas com o cortejo atrás e eu fui assim à frente de mão dada com eles, estragando-lhe todas as fotos, mas achando que, pronto, ele deveria caminhar com as duas namoradas.
Ela era muito bonita e usava o garfo de uma maneira especial como se tivesse que rir sempre antes de cada garfada.
Hoje tropecei na foto. Tropecei literalmente na foto, porque estava no chão na confusão a que eu chamo quarto. E olhei para a foto da menina que eu fui e que tem a idade da minha filha e pensei no que diria ela de mim se me conhecesse, com o meu garfo na mão, com o meu vestido de casamento, a rir-me à mesa. E achei que ela não iria olhar para cima com os olhos castanhos achinesados e desejar ser como eu quando fosse crescida. E sinto que a desapontei. Dei-lhe excesso de peso e hipertensão, uma franja que não queria e o cabelo pintado de preto por engano. Dei-lhe o Elia Kazan como realizador preferido e lágrimas a ver o Esplendor na Relva, de cada vez, como se fosse a primeira. Dei-lhe 5 anos de ensino superior para nada, um mestrado inacabado, doenças tropicais. Dei-lhe um gosto por causas perdidas e o horror à confrontação. Não lhe dei casa própria, nem carro próprio e ás vezes nem amor próprio e sinto-me culpada por isso. Dei-lhe um gosto pelo sarcasmo e pela ironia e disso não me arrependo porque esse é o truque de passar pela vida, conhecendo-a e aceitando-a sem a aceitar. Dei-lhe o gosto pela comida condimentada com especiarias, colorida com especiarias e perfumada com especiarias. E o vício do chá e das pilhas de livros. E mais nada.
O que não deixa de ser mau, porque a menina da foto ao lado queria ser cabeleireira...