TAMBÉM TU, BRUTUS?!

Acho que o cabelo deve ter sido seco pelo meu pai, acho que era sempre ele que o fazia e punha-me aquele ganchinho de lado. O vestido era de um tecido cru e com o tempo começou a apertar-me na barriga e a limitar-me o movimento dos braços, mas eu gostava muito dele e tenho-lhe memórias de festas associadas. Acho que toda a gente tem um vestido assim; daqueles que se toca no tecido e se sentem coisas boas apesar de as não recordarmos com detalhe.
A foto é de um casamento, claro. Só nessas fotos se fica assim hirto a olhar para a frente meio-assustada. E recordo-me que era de uma amiga da minha mãe, também professora, que não era daqui. Era a única crescida que eu conhecia que tinha um namorado e eu achava que ele era também meu namorado porque supunha eu que as pessoas tinham cada uma apenas uma função. E no dia do casamento, seguindo, se não me engano, uma tradição da terra, eles caminharam pelas ruas com o cortejo atrás e eu fui assim à frente de mão dada com eles, estragando-lhe todas as fotos, mas achando que, pronto, ele deveria caminhar com as duas namoradas.
Ela era muito bonita e usava o garfo de uma maneira especial como se tivesse que rir sempre antes de cada garfada.
Hoje tropecei na foto. Tropecei literalmente na foto, porque estava no chão na confusão a que eu chamo quarto. E olhei para a foto da menina que eu fui e que tem a idade da minha filha e pensei no que diria ela de mim se me conhecesse, com o meu garfo na mão, com o meu vestido de casamento, a rir-me à mesa. E achei que ela não iria olhar para cima com os olhos castanhos achinesados e desejar ser como eu quando fosse crescida. E sinto que a desapontei. Dei-lhe excesso de peso e hipertensão, uma franja que não queria e o cabelo pintado de preto por engano. Dei-lhe o Elia Kazan como realizador preferido e lágrimas a ver o Esplendor na Relva, de cada vez, como se fosse a primeira. Dei-lhe 5 anos de ensino superior para nada, um mestrado inacabado, doenças tropicais. Dei-lhe um gosto por causas perdidas e o horror à confrontação. Não lhe dei casa própria, nem carro próprio e ás vezes nem amor próprio e sinto-me culpada por isso. Dei-lhe um gosto pelo sarcasmo e pela ironia e disso não me arrependo porque esse é o truque de passar pela vida, conhecendo-a e aceitando-a sem a aceitar. Dei-lhe o gosto pela comida condimentada com especiarias, colorida com especiarias e perfumada com especiarias. E o vício do chá e das pilhas de livros. E mais nada.
O que não deixa de ser mau, porque a menina da foto ao lado queria ser cabeleireira...
7 Comments:
Alexandra, seus textos sao divinos. Adoro te ler!
Essa foto esta uma belezura... Voce parece ter sido uma menina muito comportada. um beijo!
obrigada meninas! eu também gosto imenso de vos ler. e sim fezoca, eu era uma alma velha - o que é praticamente um crime, numa criança!!!
Gosto muito das visitas de vocês as duas!
:) descobri o blog já nem si como, mas agora visito-o e adoro-o,este texto está muito bonito :)
És uma pessoa muito bonita, não desapontas ninguém.:-)
Há bastante tempo que acompanho a sua escrita e as suas aventuras num lugar tão distante, eu acho que escreve muito bem, porque o que diz e a forma como o diz "mexe" comigo, o universo da maternidade "mexe" também muito comigo, sou filha e sou mãe e gostaria de ser mais mãe e acho ainda que gostava de ser tão mãe quanto a Carla é.
Cristina Dinis Roldão
Tenho a certeza que a menina da foto está muito orgulhosa de ti! Eu estou!....
Beijinhos.
E deu-lhe belos textos também, não?
Bjs
Andréa
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